O BRASIL E A RESISTÊNCIA CONTRA AS INVESTIDAS AUTORITÁRIAS PÓS-DITADURA

O BRASIL E A RESISTÊNCIA CONTRA AS INVESTIDAS AUTORITÁRIAS PÓS-DITADURA

“Le Brésil n’est pas un pays sérieux”. A frase atribuída ao ex-presidente francês Charles de Gaulle denota que o Brasil não é um país que deve ser levado a sério. A declaração pode ser lida como uma grave ofensa diplomática, um ataque a uma nação soberana, mas por analogia, não podemos deixar de isentar de responsabilidade o referido ex-presidente, utilizando um instituto do Direito Penal aplicável aos crimes contra a honra, que é a exceção da verdade.

Explicamos: Como podemos nos considerar um país sério quando o atual representante do Poder Executivo saúda no Congresso Nacional um notório torturador e um dos líderes do órgão repressivo maior e das práticas mais bárbaras cometidas durante a ditadura militar?[1] Como podemos nos considerar um país sério quando o atual presidente vai ao Chile, país que passou por traumas semelhantes aos enfrentados pelo Brasil, e reverencia um dos maiores ditadores daquele país, em um contexto em que o país busca reconciliar com o passado e aprender com o erro da ditadura, para que este não mais se repita?[2]

A título de exemplo: merece ser destacado que, no país em que o então presidente brasileiro prestou homenagens ao ditador Augusto Pinochet, um general foi destituído por prestar saudação a um genocida que cumpre pena por crimes contra a humanidade cometidos durante o regime Pinochet.

Pois bem. Em caminho inverso a reconciliação com a história nacional, temos o chefe do Poder Executivo no Brasil instando os militares a celebrarem o golpe militar de 1964, reabrindo feridas ainda não cicatrizadas, que arderão por toda eternidade nas famílias dos torturados, assassinados e desaparecidos, e contribuindo para um conflito social em virtude da falta de diplomacia, respeito e compromisso com a história nacional.[3]

A despeito da Comissão Nacional da Verdade instaurada em 2011, criada pela Lei 12.528/2011, cujo relatório final foi entregue em 2014, onde constatou e atribuiu a 377 agentes públicos a morte e desaparecimento de 434 pessoas durante o regime ditatorial militar, foi constatado também que 6.591 militares que se opuseram ao regime ditatorial e foram perseguidos, torturados, processados e excluídos[4], ainda existem correntes que buscam negar ou relativizar o golpe de 64 e o período ditatorial vivido entre 1964-1985, em claro processo de negação histórica.

A exemplo das atrocidades cometidas contra os militares, está o caso do SGT JND, que foi perseguido, preso, humilhado, excluído e condenado[5], sem direito de defesa ou qualquer tipo de explicação, homem íntegro e honrado de ideais sólidos, que teve que viver na clandestinidade até ter o mal reparado pelo Estado, ou ao menos amenizado, ante o inferno que viveu. Assim, como a família de um dos articulistas teve que suportar esse fardo ora relatado, várias outras famílias foram vitimadas pelo ímpeto autoritário durante, e mesmo após, o regime ditatorial.

Uma das principais teses dos afiliados às correntes de negação e da buscando pela revisão histórica é a de que em 1964 o Brasil enfrentava uma “ameaça comunista”, e que os militares foram obrigados a intervir através de um suposto contragolpe, buscando evitar a “ditadura do proletariado” e lutar contra os “terroristas”.

Aos entusiastas desta vertente revisionista, reproduzimos as provocações do doutor em história pela USP e professor da UFMG, Rodrigo Patto Sá Mota, in verbis:

“Se o regime político instaurado em 1964 era popular e tinha apoio majoritário da população, por que diabos necessitou de mecanismos autoritários para se manter no poder?”. E a segunda: “Consideremos por um momento, apenas para construir raciocínio hipotético, que havia séria ameaça comunista e a intervenção militar visava defender a democracia contra o totalitarismo (reitero que considero tais argumentos sem fundamento). Se assim fosse, qual a justificativa, então, para terem instalado uma ditadura e se aboletarem no poder durante duas décadas? Porque não entregaram o poder aos civis depois de derrotada a “ameaça”?”[6]

Em verdade, não entregaram o poder aos civis porque derrotar a ameaça nunca foi o objetivo do golpe. O objetivo era o poder e só o poder, ou seja, era alojar-se e acomodar-se, perpetuamente, no comando, dominando a todos conforme as próprias convicções.

O contragolpe nunca existiu, até porque para existir um contragolpe se faz necessário que exista um golpe, que tenha sido iniciado e esteja em desenvolvimento, vez que o que impulsiona ou faz nascer o contragolpe é a força cinética do próprio golpe inicial, e se não temos o golpe inicial a ditadura nada mais foi do que um verdadeiro e histórico golpe.

Prosseguindo na análise do regime dos “anos de chumbo”, cumpre destacar a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil durante o regime militar, que mesmo impondo resistência, viu garantias serem suprimidas, prerrogativas dos advogados serem violadas, atos institucionais cassando o remédio constitucional de excelência, que é o Habeas Corpus, dentre outras violações, e, por esta razão, em seu discurso de posse à presidência da Ordem, em 1971, José Cavalcanti Neves dirigiu ofício ao então presidente Médici, manifestando as seguintes demandas, in litteris:

a) a preocupação em face de atos de violência e de cerceamento de liberdade profissional, que vêm sendo praticados, com ilegalidade e abuso de poder, contra advogados no pleno desempenho de sua atividade, considerada pela própria lei como colaboração indeclinável na administração da justiça; b) a convicção da inadiável necessidade jurídica do restabelecimento, em sua plenitude da garantia do habeas corpus; c) a necessidade de um pleno e eficiente funcionamento do Conselho de Direito da Pessoa Humana, dado que esse funcionamento interessa não só a todos os cidadãos brasileiros que nele devem ter um instrumento vigilante contras as formas de opressão e vilipêndios aos direitos fundamentais, como também interessa ao próprio Governo, para esclarecer e punir abusos que desfiguram e deturpam a dignidade da função pública; d) a revogação de recentes dispositivos constitucionais ou legais que estenderam aplicabilidade da pena de morte a setores que exorbitam dos conceitos jurídicos e tradicionais do Direito Brasileiro, de modo que sejam retomadas a orientação cristã e a consciência humanística que sempre inspiraram as manifestações do nosso povo e a serena conceituação dos juristas e pensadores no repúdio à penalidade extrema, como inadequada aos objetivos de uma correta filosofia penal; e) o pleno restabelecimento das garantias do Poder Judiciário, como condição primordial ao exercício dos direitos individuais e ao normal funcionamento das instituições democráticas; f) a observância do preceito que manda comunicar á autoridade judiciária competente a efetivação de prisões, advertindo os agentes de que estão normalmente sujeitos ao cumprimento desse dever.(NINA,2001:169-170)[7]

Nas primeiras trincheiras em defesa dos injustiçados estava a ilustre advogada baiana Ronilda Maria Lima Noblat[8] e o inigualável advogado Heráclito Fontoura Sobral Pinto, que sobre seu ofício dizia que o advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que se dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá o sustento e à sua família. Não é advogado[9].

Vejam, pois, que homenagear torturadores e golpistas que mantiveram o Brasil sob o jugo de um regime totalitário por tanto tempo, e fazê-lo na Casa do Povo, que é uma das casas do Congresso Nacional,  fechada através do famigerado AI-5, é um ato eivado de irresponsabilidade e de desconhecimento histórico, alimentando teorias revisionistas que não se sustentam e desmoronam à primeira checagem mais séria através de ciências legitimamente reconhecidas, e que se algum efeito tem, é de fomentar a polarização e o anti-intelectualismo que assola grande parte do Ocidente na atualidade.

Após tudo quanto exposto, asseveramos que de fato o Brasil não se apresenta como um país sério em tempos atuais. Os movimentos, em sede de relações exteriores, estão desordenados e seguindo padrões ideológicos que estão fadados ao fracasso; a postura do Poder Executivo interna e externa não inspira confiança e atos como a celebração do regime ditatorial, movimentam-se no sentido de revisar a história e promover alteração do material didático para ocultar o passado obscuro do nosso país[10], ato este que pode acarretar uma grave macula ao nosso presente e futuro, além de originar descrédito nacional e internacional.

Apesar dos pesares, ainda há tempo para que lutemos e busquemos assegurar a estabilidade do nosso Estado Democrático de Direito e a sociedade civil, as organizações e as instituições em geral têm o dever de impor resistência às investidas autoritárias e anticientíficas em maior e menor grau. O preâmbulo da Constituição Federal de 1988 deve imperar, visto que: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição, conforme preceitua o artigo 1º, parágrafo único da Carta Magna de 1988.

 

JONATA WILIAM SOUSA DA SILVA, advogado criminalista, pós graduando em Ciências Criminais na Universidade Católica do Salvador, membro da Comissão Especial de Segurança Pública e Sistema Prisional e da Comissão de Direito Criminal da OAB/BA.

VINICIUS DANTAS, advogado criminalista, pós graduado em Criminologia, presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da Associação brasileira dos Advogados Criminalistas na Bahia (ABRACRIM/BA), Vice presidente da Comissão Especial de Segurança Pública e Sistema Prisional da OAB/BA e membro da Comissão de Direito Militar OAB/BA.

[1]Portal G1: Bolsonaro diz no Conselho de Ética que coronel Ustra é ‘herói brasileiro’. Disponível em:  http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/bolsonaro-diz-no-conselho-de-etica-que-coronel-ustra-e-heroi-brasileiro.html 

[2] – Portal BBC: As homenagens de Bolsonaro a Pinochet e por que o general ainda divide o Chile https://www.bbc.com/portuguese/internacional-47674503

[3]Portal Último Segundo: https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2019-03-31/manifestantes-contra-e-favor-do-golpe-entram-em-confronto-em-sao-paulo-assista.html

[4]http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/12/consulte-integra-do-relatorio-final-da-comissao-nacional-da-verdade.html

[5] – http://bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/200/149.html#to

[6] – Portal “Publica”. 1964: “O Brasil não estava à beira do comunismo”, diz historiador. https://apublica.org/2019/04/1964-o-brasil-nao-estava-a-beira-do-comunismo-diz-historiador/

[7] – NINA, Carlos Sebastião Silva. A Ordem dos Advogados do Brasil e o Estado brasileiro. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2001.

[8] – https://oab-ba.jusbrasil.com.br/noticias/36555/advogada-ronilda-noblat-e-sepultada-em-salvador

[9] – https://www.conjur.com.br/2014-abr-01/herois-advocacia-resistencia-regime-generais2

[10] – Ministro promete mudar livros didáticos por “visão mais ampla” da ditadura  https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/04/politica/1554334968_202816.html

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