Os entraves para se utilizar a educação como verdadeiro instrumento ressocializador
A execução da pena tem como objetivos principais garantir efetividade às disposições da decisão judicial condenatória, bem como promover meios que possibilitem a adequada integração social do apenado. É isso o que dispõe a Lei nº 7.210/84 – conhecida como Lei de Execução Penal – LEP – logo em seu artigo 1º.
Percebe-se na nossa legislação pátria, seja na citada LEP, no Código Penal, no Código de Processo Penal, ou ainda em leis extravagantes, um esforço contínuo no que toca à reinserção harmônica do preso na sociedade, utilizando-se, para tanto, de instrumentos eficazes, a exemplo do trabalho e da educação.
Nesse contexto, cumpre chamar atenção à decisão sobre o tema, no caso da jovem Priscila, a qual, infelizmente, nos causou extrema perplexidade.
Priscila Regina da Costa da Silva, 34 anos, presidiária no Conjunto Penal Feminino de Salvador/BA, fora aprovada, através do ENEM PPL de 2018, no curso de Biblioteconomia da Universidade Federal da Bahia – UFBA.
No entanto, em que pese a aprovação, a detenta, reclusa desde 2016 por cometimento do crime de sequestro, já havendo sido presa em outras 02 (duas) ocasiões pelos crimes de tráfico de drogas e estelionato, não obteve a devida autorização judicial necessária para que se matriculasse e frequentasse o referido curso.
A decisão judicial pautou-se, em suma, no fundamento de que Priscila cumpre a pena em regime fechado e, desta forma, não haveria previsão na norma que permitisse a sua saída para estudar em instituição de ensino superior.
Destaca-se que, durante recente inspeção realizada pela Comissão Especial de Sistema Prisional e de Segurança Pública da OAB/BA, ao Conjunto Penal Feminino do qual Priscila encontra-se inserida, a apenada, suplicando pelo direito de estudar e, assim, galgar mais um degrau na escada de sua ressocialização, expressou-se da seguinte forma:
As primeiras indagações que surgem da análise do caso em apreço são: ora, por que foi concedido o direito de prestar o ENEM, se posteriormente não seria permitido que a presidiária ingressasse no curso? Tratar-se-ia, então, de uma promessa vazia por parte do Estado ou da certeza de que a apernada não teria condições de ser aprovada?
Trata-se a educação de um direito social assegurado a todos os brasileiros indistintamente. Insculpido nos artigos 6º e 205 da nossa Carta Magna, é considerado um dever do Estado promovê-lo, afim de que se viabilize o pleno desenvolvimento da pessoa humana.
Visando efetivar este direito também aos presos, criou-se o instituto do Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade – ENEM PPL, que engloba tanto os presidiários, quanto os jovens sob medida socioeducativa que inclua privação de liberdade.
Através deste exame, os presos ou internados que alcancem média acima de seiscentos pontos, adquirem o direito de se inscrever no Sistema de Seleção Unificada – SISU para disputarem as vagas oferecidas pelas universidades federais do país.
Notadamente em relação aos indivíduos que cumprem pena em regime fechado, a liberação para o estudo depende de autorização do Poder Judiciário.
Conforme dito alhures, a finalidade maior do nosso sistema penal hodierno é a busca por meios que possibilitem a ressocialização gradual do apenado, não somente no viés teórico, mas, especialmente, no prático, de modo que o indivíduo possa, de fato, reingressar à sociedade com condições plenas de desenvolvimento.
Extrai-se da obra de CLAUS ROXIN (1986, p. 40) a seguinte lição acerca do tema:
“(…) servindo a pena exclusivamente fins racionais e devendo possibilitar a vida humana em comum e sem perigos, a execução da pena apenas se justifica se prosseguir esta meta na medida do possível, isto é, tendo como conteúdo a reintegração do delinquente na comunidade. Assim, apenas se tem em conta uma execução ressocializadora. O facto da idéia de educação social através da execução da pena ser de imediato tão convincente, deve-se a que nela coincidem prévia e amplamente os direitos e deveres da colectividade e do particular, enquanto na cominação e aplicação da pena eles apenas se podem harmonizar através de um complicado sistema de recíprocas limitações.” [1]
Entretanto, com extrema facilidade se percebe que o sistema carcerário no Brasil caminha em sentido diametralmente oposto a qualquer proposta de readequação social dos indivíduos que o compõem. A precariedade e insalubridade de nossos presídios são inegáveis e desrespeitam as mínimas noções dos direitos humanos.
As superlotações de celas, a decadente infraestrutura e as nocivas condições de higiene, saúde e alimentação são fatores que sinalizam o alarmante descaso com estas instituições. Soma-se a isto, a forte presença de organizações criminosas dentro das penitenciárias, as quais reforçam a imersão do indivíduo no mundo do crime, contribuindo acentuadamente para o aumento da reincidência e, por conseguinte, da criminalidade no país.
À vista disso, uma pessoa que, em meio a esse cenário caótico, desafia a sistemática e projeta na educação uma alternativa para uma nova caminhada, não merece ser impedida de evoluir e com isso retardar seu processo de socialização, por entraves causados por parte do Estado.
A LEP, em seu artigo 41, inciso VII, estabelece uma série de assistências que constituem direitos dos presos e, dentre elas, está a assistência educacional. A despeito da ausência de disciplina expressa acerca da assistência educacional em sede de ensino superior – como se tem com o ensino fundamental e médio (artigos 18 e 18-A) – necessário também se faz garanti-la.
Neste sentido, o talentoso MESQUITA JÚNIOR (1999, p. 91) esclarece que “se o Estado não possibilita a assistência educacional no âmbito do 3º grau, o condenado terá direito a frequentar, em qualquer local, mesmo que fora do estabelecimento, e em qualquer regime, o curso superior a que esteja habilitado”[2].
De mais a mais, o artigo 126 desta mesma lei promove um estímulo ao condenado que cumpre pena em regime fechado ou semiaberto, a trabalhar e/ou estudar. Através do instituto da remição, a cada 12h de frequência escolar, considerando expressamente o ensino superior (parágrafo 1º), o preso terá diminuído 01 (um) dia de sua pena.
A remição da pena em razão do estudo encontra-se positivada, ainda, na súmula 341 do Superior Tribunal de Justiça, que assim dispõe: A frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semi-aberto.
Corroborando com o pensamento, o ministro Gilmar Mendes, em decisão recente, onde determinou que o cálculo da remição da pena de um apenado aprovado no Enem seja feito com base em 50% da carga horária definida legalmente para o ensino médio regular (2.400 horas), resultando um total de 133 dias a serem remidos.
Ao prover o Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC nº 165084), interposto contra decisão do Superior Tribunal de Justiça – STJ que manteve a determinação de que o cálculo fosse realizado com base na carga horária para o ensino médio na modalidade “Educação de Jovens e Adultos” (EJA), equivalente a 1.200 horas, que resultaria em 66 dias remidos.
Nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, in verbis:
“O reeducando que escolhe estudar por conta própria, com os materiais disponíveis e sem acompanhamento, emprega esforços maiores para alcançar seus objetivos, tornando sua conquista algo louvável […] as normas devem ser interpretadas de forma a beneficiar o réu , e considerar a menor carga horária de ensino para o cálculo da remição representaria a diminuição de todo o esforço e o empenho demonstrados pelo apenado” […] Valorizar a conquista trará consequências positivas à sociedade, pois servirá de incentivo para todos aqueles que vislumbrarem os benefícios do estudo, principalmente para aqueles que já acreditaram nos ‘benefícios’ de uma vida delituosa”
Desta forma, na medida em que se vislumbra na legislação específica sobre a execução da pena, no entendimento sumulado do STJ, assim como em posicionamento recente do STF, uma prerrogativa ao preso que frequente ensino formal, não merece prosperar o posicionamento contrário à possibilidade de saída do custodiado para estudos, ainda que esteja em regime fechado.
Sob outro ângulo, simpatizamos com a interpretação de que, sendo o trabalho e o estudo instrumentos similares na busca de efetivação da função reeducadora do sistema penal, é cabível, por óbvio, uma aplicação analógica das disposições referentes ao direito do trabalho do preso, aos casos de direito ao acesso à educação.
Ao passo em que há disposição no artigo 36 da Lei nº 7.210/84, no sentido de autorizar a saída do preso, em regime fechado, para o trabalho de caráter público, forçoso se faz considerar que, nas mesmas condições, o estudo externo deva, também, ser autorizado. Isto porque trabalho e estudo são bens jurídicos semelhantes e tutelados pelo Estado, os quais dignificam a pessoa e abrem oportunidades para uma vida melhor, não comportando, portanto, tratamentos diferenciados entre os institutos.
Assim, ante qualquer ponto de análise, mostra-se injustificável o óbice perpetrado pelo Estado, no sentido de não permitir que o detento tenha acesso a uma rede de ensino. O que se espera dos magistrados, então, é uma postura ativa/permissiva no que tange à possibilidade de o presidiário, aprovado em curso do ensino superior, possa se ausentar do presídio para estudar.
Aliás, proibindo o ingresso ao estudo superior, percebe-se, então, que o Estado, além de exercer o jus puniendi conforme estabelecido na sentença penal condenatória, pune o condenado por mais duas vezes: pune, novamente, em razão de sua ineficiência em garantir instituições penitenciárias com estruturas adequadas que permitam o desenvolvimento harmônico do apenado; e, por fim, em negar provimento jurisdicional ao indivíduo, que, inserido a todo esse caos, busca na educação uma egressão segura.
Logo, faz-se necessário que o judiciário preste o devido respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana, do acesso à educação e da função ressocializadora do sistema penal moderno, tão caros aos ditames do direito vigente.
Tem-se a pena como medida que visa a privação da liberdade do indivíduo, e não da sua dignidade. Nesta senda, o princípio da humanidade merece especial realce:
[…] O condenado deve ser tratado com humanidade. Não se permite que o castigo imposto venha a ser instrumento de inquidade e degradação; necessário se faz, no entanto, que a pena, como um mal que o delinquente deve sofrer, não se dilua e desapareça no tratamento conferido ao condenado.”[3]
Outrossim, através da educação, o indivíduo que reingressaria à sociedade com enormes chances de cometer novos delitos, marcado pelo estigma de ex-detento, passa a ser visto como um sujeito com novas oportunidades. Assegurar ao preso o direito à educação é sinônimo de garantir o direito constitucional da igualdade.
Corroborando com o ensinamento do douto Paulo Freire, cabe repisar que, se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda.
A educação, nesse processo, cumpre papéis fundamentais. Auxiliará na transformação do quadro deplorável que se encontram as instituições penitenciárias no país, inclusive no quesito de disciplina interna dos apenados, assim como, servirá como um instrumento eficaz na busca de redução da criminalidade e da reincidência, viabilizando uma segurança pública de maior qualidade.
O cerne do debate, aqui, é romper com a visão de que a garantia do acesso à educação do preso é um benefício somente para este indivíduo, quando, em verdade, trata-se de uma política de ressocialização inseparável da execução penal, que traz, indubitavelmente, ganhos consideráveis para a sociedade como um todo.
Conclui-se asseverando que, alinhada com o escopo ressocializante do processo penal, surge, pois, a educação, como medida efetivadora do princípio basilar da isonomia material.
DANIEL OLIVEIRA, acadêmico de direito da Universidade do Estado da Bahia – UNEB.
VINICIUS DANTAS, advogado criminalista, pós graduado em Criminologia, presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da Associação brasileira dos Advogados Criminalistas na Bahia (ABRACRIM/BA), Vice presidente da Comissão Especial de Segurança Pública e Sistema Prisional da OAB/BA e membro da Comissão de Direito Militar OAB/BA.
[1] ROXIN, Claus, Problemas Fundamentais de Direito Penal. 1ª Ed. São Paulo: Veja, 1986.
[2] – MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Manual de execução penal: teoria e prática: de acordo com a lei nº 9.714/98. São Paulo: Atlas, 1999.
[3] MARQUES, José Frederico, Tratado de direito penal. Campinas: Millenium, 1999.